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O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad em visita ao Brasil, em 2009 Foto: Getty Images / BBC News Brasil |
A apreensão da comunidade internacional sobre as ambições nucleares iranianas não é novidade. O governo iraniano, por sua vez, insiste há anos que seu programa nuclear tem fins exclusivamente pacíficos. Em meio a esse cenário, há exatos quinze anos, o Brasil assumiu um papel diplomático inédito, ao intermediar, ao lado da Turquia, um acordo nuclear com Teerã.
Firmado em 17 de maio de 2010, o pacto foi celebrado como uma vitória da diplomacia pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que encerrava seu segundo mandato naquele ano. Naquele período, Lula despontava como uma liderança mundial de relevância, reconhecido inclusive pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que no ano anterior o apelidara de "o cara".
Curiosamente, foi o próprio Obama quem, em 2009, solicitou oficialmente que Brasil e Turquia se engajassem na busca por uma solução diplomática para a questão iraniana. No entanto, tão logo o acordo foi anunciado, as principais potências ocidentais, incluindo a Casa Branca, reagiram de forma crítica e desconfiada, levando o entendimento ao fracasso.
À época, o Irã já havia ampliado significativamente sua capacidade de enriquecer urânio — elemento chave tanto para a geração de energia quanto para a produção de armas nucleares. As nações ocidentais pressionavam para que Teerã enviasse ao exterior 1,2 tonelada de seu urânio levemente enriquecido, de modo a impedir que o país detivesse todas as etapas do ciclo de combustível nuclear.
O acordo mediado por Brasil e Turquia previa exatamente isso: que o Irã transferisse 1,2 tonelada de urânio enriquecido a 3,5% para a Turquia. Em contrapartida, Teerã receberia 120 quilos de combustível nuclear enriquecido a 20%, destinado a um reator que produz radioisótopos utilizados em tratamentos médicos. Todo o material iraniano permaneceria sob guarda conjunta dos governos turco e iraniano durante o processo.
A proposta tinha como referência uma sugestão anterior da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão ligado às Nações Unidas.
No dia da assinatura do tratado, os Estados Unidos divulgaram um comunicado no qual reconheciam os esforços diplomáticos de Brasil e Turquia, mas também manifestavam sérias dúvidas quanto ao compromisso do Irã em cumprir as exigências internacionais. A Casa Branca alegava que não havia transparência suficiente sobre o total de urânio estocado por Teerã, além da quantidade negociada.
"O Irã declarou que continuará enriquecendo urânio a 20%, o que constitui uma violação direta às resoluções do Conselho de Segurança da ONU", apontava a nota divulgada na ocasião. E acrescentava: "Diante das repetidas violações dos compromissos assumidos pelo Irã, permanecem as profundas preocupações dos Estados Unidos e da comunidade internacional".
Naquele contexto, tanto Brasil quanto Turquia ocupavam cadeiras não permanentes no Conselho de Segurança da ONU e buscavam evitar que fossem aprovadas novas sanções contra o regime iraniano. Apesar da esperança de que o pacto selado fosse suficiente para impedir punições mais duras, isso não se concretizou. No mês seguinte, em junho de 2010, o Conselho aprovou novas sanções contra o Irã, com votos contrários apenas de Brasil e Turquia.
Diplomacia brasileira subestimada pelos EUA
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Amorim, Lula, Ahmadinejad e Erdogan, ao assinarem o acordo em Teerã Foto: Getty Images / BBC News Brasil |
"Acabamos nos queimando ao fazer exatamente aquilo que todos diziam ser necessário, e no fim percebemos que há quem simplesmente não aceite um 'sim' como resposta", declarou Amorim ao jornal britânico Financial Times, em junho de 2010.
Essa interpretação foi compartilhada por Trita Parsi, analista americano de origem iraniana, que em 2012 lançou o livro A Single Roll of the Dice (Uma Única Jogada do Dado), no qual detalha a política externa da administração Obama em relação ao Irã.
Segundo Parsi, tanto o Brasil quanto a Turquia foram subestimados pelos Estados Unidos, que acreditavam que a missão diplomática liderada por Lula e pelo então primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, fracassaria em Teerã.
"Em poucos meses, por meio de uma diplomacia intensa, Brasil e Turquia alcançaram aquilo que as potências ocidentais não foram capazes de conseguir em anos", escreveu Parsi, dedicando um capítulo inteiro à atuação dos dois países no episódio.
De acordo com o analista, enquanto Lula e Erdogan buscavam uma solução pacífica, Washington articulava uma coalizão internacional para aprovar novas sanções contra o Irã, esperando que Teerã rejeitasse qualquer acordo. No entanto, quando a mediação deu certo, os Estados Unidos reagiram rapidamente para deslegitimar o entendimento.
Parsi relata que o governo americano lançou uma ofensiva midiática contra Lula e Erdogan, acusando-os de ingenuidade e de terem sido enganados por Teerã. Ao mesmo tempo, alegavam que o Irã apenas aceitara o acordo para ganhar tempo e driblar as sanções. França e Reino Unido também se posicionaram contra o pacto.
"Vendo em retrospectiva, fica claro que os EUA jamais levaram esse acordo a sério. Eles contavam com o fracasso da tentativa de Brasil e Turquia, o que permitiria sustentar a campanha por novas sanções. Quando, inesperadamente, o acordo foi firmado, ficaram atordoados e não souberam como reagir", disse Parsi à BBC News Brasil, em entrevista concedida em 2012.
O que parecia ser uma consagração da diplomacia brasileira, acabou se transformando em motivo de críticas e desgaste internacional.
"A rápida e dura rejeição à Declaração de Teerã irritou profundamente Brasil e Turquia. Como Lula e Erdogan haviam investido pessoalmente na mediação, essa rejeição pública soou como uma desqualificação direta da liderança de ambos", descreve Parsi em seu livro. Ele também relata que a campanha midiática nos Estados Unidos retratou os dois líderes como vaidosos, megalomaníacos e até antissionistas e antiamericanos.
Para compor sua obra, Parsi entrevistou autoridades de todos os países diretamente envolvidos nas negociações nucleares com o Irã, incluindo Estados Unidos, França, Reino Unido, Israel, Turquia, Brasil e o próprio Irã. Um dos entrevistados foi o ex-chanceler brasileiro Celso Amorim.
Acerto diplomático, mas erro no cálculo político
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Lula e Ahmadinejad, do Irã |
"O apoio da Turquia, na condição de país muçulmano e integrante da Otan, conferia ainda mais legitimidade à iniciativa brasileira. A proposta buscava justamente reduzir tensões e evitar que o Irã sofresse novas sanções", explicou à BBC News Brasil.
Segundo Karina, do ponto de vista diplomático, a tentativa foi correta e coerente com os princípios que guiavam a política externa do Brasil naquele momento, projetando o país como defensor do diálogo e da paz. Entretanto, o erro esteve no cálculo político e na leitura equivocada do cenário internacional.
"O governo brasileiro subestimou a desconfiança das potências ocidentais em relação ao Irã e ignorou o nível de tensão elevado, especialmente após o fracasso de rodadas anteriores de negociação e a eleição contestada de Mahmoud Ahmadinejad, em 2009", pontua.
Além disso, ela destaca que o momento era particularmente adverso, já que os Estados Unidos articulavam novas sanções e enxergaram o acordo como uma barreira à sua estratégia de pressionar Teerã.
Para a professora, o fracasso do acordo não se deu pela proposta em si, mas porque não atendia às exigências mínimas das potências ocidentais: o entendimento não previa a suspensão do enriquecimento de urânio pelo Irã e tampouco solucionava outros pontos sensíveis do programa nuclear.
"Questões geopolíticas foram determinantes. Estados Unidos, França e Reino Unido não estavam dispostos a abrir espaço para que Brasil e Turquia assumissem protagonismo em um tema que consideravam central para a segurança global e para o equilíbrio no Oriente Médio", conclui.
Apesar do fracasso, ela considera que o episódio deixou clara a capacidade do Brasil de atuar como mediador em conflitos internacionais — mas também escancarou os limites dessa atuação quando esbarra nos interesses das grandes potências.